Então já viu, ceia de Natal pro meu pai, se limitava a comer figos, passas e castanhas depois da Missa do Galo. Até que eu, a ovelha negra da família, ousei mesmo no luto, sugerir mais uma loucura minha:
LOC1: Bom, no Natal, quero comer peru.
Técnica: Barulho que represente o espanto da família.
LOC2: Não podemos convidar ninguém querido, estamos de luto...
LOC1: Mas quem falou de convidar ninguém! essa mania... Quando é que a gente já comeu peru em nossa vida! Peru aqui em casa é prato de festa, vem toda essa parentada do diabo...
LOC3: Meu filho, não fale assim...
LOC1:Pois falo, pronto!
Narrador: Era sempre aquilo: vinha aniversário de alguém e só então faziam peru naquela casa. Peru era prato de festa: uma imundície de parentes já preparados pela tradição, invadiam a casa por causa do peru, das empadinhas e dos doces. Minhas três mães, três dias antes já não sabiam da vida senão trabalhar, trabalhar no preparo dessa comida toda, a parentagem devorava tudo e ainda levava embrulhinhos pros que não tinham podido vir. As minhas três mães mal podiam de exaustas. Do peru, só no enterro dos ossos, no dia seguinte, é que mamãe com titia ainda provavam um naco de perna, vago, escuro, perdido no arroz. E isso mesmo era mamãe quem servia, catava tudo pro velho e pros filhos. Na verdade ninguém sabia de fato o que era peru em nossa casa: peru, resto de festa.
LOC1: Ah vamos, e nada de mesquinharia: duas farofas: a gorda com miúdos e a seca douradinha! E é claro cerveja bem gelada! Que eu sei que a senhora gosta mamãe...
LOC3: Meu filho... imagina, que isso...
LOC4: É louco mesmo...mas é um sobrinho querido.
Narrador: E esse foi o consentimento da família. Disfarçado e nada assumido. O fato é que compramos o peru, cozinhamos o peru, só nós cinco: eu, mamãe, minha tia e meus irmãos.
Técnica : Barulho de talheres, uma musica natalina nos fundos, agitação.
LOC1: Mamãe, lá vai a senhora fazer economia na hora de cortar esse Peru. Não senhora, corte inteiro, eu dou conta disso tudo sozinho.
LOC2: Mas e seus irmãos Juca...
LOC1: Vai ter pra todo mundo, capricha aí nesse prato.
LOC2: Meu filho....tá aqui mas...
LOC1: Toma mamãe . É seu....
Narrador: Mamãe, por um segundo, expressou seu olhar desentendido. Pobre, sempre tão acostumada a servir os outros... ela, que sempre segurou minha barra, acobertava de papai minhas saídas noturnas, as festas, as aventuras com Rose....! Ela sem dúvida merecia o maior pedaço...
LOC1: Toma tia, esse prato aqui é da senhora...
Narrador: Sim. Aquela abundancia de comida no prato da minha família, gerara uma sessão de choro, emocionados com o Natal que nunca tinham tido, dos quais sempre foram privados, tudo por causa dos limites de papai. Esse, que mesmo morto, (Deus o tenha!) parecia vir mais uma vez estragar nosso Natal. É que o pranto evocara por associação a imagem indesejável de meu pai morto. Meu pai, com sua figura cinzenta, vinha pra sempre estragar nosso Natal, fiquei danado. Até que o defunto foi evocado para acabar com a alegria da festa:
LOC2: Só falta seu pai...
Narrador: Foi aí que me veio uma luz, e eu decidi que para salvar a festa, seria hipócrita. Queria apenas tirar a culpa das costas de minha família, tão pequeno burguesa, tão cheia de privações. Naquele instante que hoje me parece decisivo da nossa família, tomei aparentemente o partido de meu pai. Fingi, triste:
LOC1: É mesmo... Mas papai, que queria tanto bem a gente, que morreu de tanto trabalhar pra nós, papai lá no céu há de estar contente... contente de ver nós todos reunidos em família.
LOC2: Vocês, meus filhos, nunca poderão pagar o que devem a seu pai, um verdadeiro santo.
Narrador: Pronto, papai virara santo, figura abstrata e distante que não poderia incomodar mais ninguém. E aos poucos pude perceber os sorrisos brotando novamente, sorrisos fatigados de tanto comer, te tanto permitirem-se sentirem o sabor. Nasceu então uma felicidade familiar pra nós que, não sendo exclusivista, alguns a terão assim grande, porém mais intensa que a nossa me é impossível conceber. Não era o fato de esbanjarmos... era a sensação de vermos uns aos outros satisfeitos. A tamanha falta de egoísmo me transportara o nosso infinito amor...
LOC3: Ai ai, vou arrumar essa louça e vou me deitar, já está tarde....
LOC4: Eu também, dá licença... (suspirando)
LOC1: Pessoal dá licença mas agora vou na festa de um amigo que me convidou, não posso fazer desfeita né....
Narrador: Pisquei pra mamãe, minha cúmplice, pois no fundo só ela sabia que na verdade ia me encontrar com a Rose, que me esperava com uma garrafa de champanha...