Narrador 1: Como ensina um conto popular angolano, na nossa terra de Luanda passam coisas que envergonham....
Narrador 2: A história que se segue foi escrita por José Luandino Vieira, português de nascimento mas angolano de coração. O escritor foi importante pelas denúncias de violência, guerras, injustiça social e desigualdade econômica, que compunham o quadro de uma terra e de um povo devastados pelo sistema colonial.
Narrador 1: A Estória da galinha e do ovo. Estes casos passaram no musseque Sambizanga, nesta nossa terra de Luanda...
Narrador 2: Foi na hora das quatro horas. Assim como, às vezes, dos lados onde o sol deita no mar, uma pequena e gorda nuvem negra aparece para correr no céu azul. Nessa corrida a nuvem começa a ficar grande, a estender braços para todos os lados, esses braços a ficarem outros braços e esses ainda outros mais finos já não tão negros... Nuvens essas, que ninguém sabe como nasceram, onde começaram, onde acabam essas malucas correndo sobre a cidade, largando água pesada e quente que traziam, rindo compridos e tortos relâmpagos, falando a voz grossa de seus trovões. Assim, nessa tarde calma, começou a confusão. Sô Zé da quitanda tinha visto passar nga Zefa rebocando o miúdo Beto e avisando para não falar mentira. Mas o menino repetia:
Beto: Juro, pelo sangue de Cristo! Eu vi bem, mamã, é a Cabíri!...
Narrador 2: Ele falava a verdade, como todas as vizinhas viram bem, uma gorda galinha de pequenas penas brancas e pretas, mirando toda a gente, desconfiada, no cesto onde estava presa. Era essa a razão dos insultos que nga Zefa tinha posto em Bina, chamando-lhe de feiticeira, dizendo que queria lhe roubar a galinha Cabíri. A vizinha Bina trazia um miúdo dentro da barriga. Mesmo assim, ela e Zefa começaram a brigar. Era caso antigo, desde que nga Zefa desconfiava que a vizinha grávida estava a pôr de comer para a sua galinha. O miúdo Beto lembrava a resposta do pai Miguel João:
Beto: Deixa ela! Bina está grávida, o homem dela está preso, e você ainda quer pelejar! Você não razão...
Narrador 2: Por isso, todos os dias Zefa vigiava sua galinha, via-lhe avançar pela areia, ciscando, a procurar os bichos de comer mas, no fim, o caminho era sempre o mesmo: parecia que tinham posto um feitiço nela. A galinha acabava entrando no quintal da vizinha. Zefa via-lhe lá satisfeita, na sombra das frescas mandioqueiras, muitas vezes até dava-lhe milho. Por isso Zefa não brigava. Mesmo que no coração tinha medo da galinha se habituar lá. Pensava que o bicho comia bem e, afinal, o ovo punha de manhã no fundo do quintal... Mas, nessa tarde, o azar saiu. Durante toda manhã, Cabíri andou a passear no quintal, na rua, na sombra, mas não pôs o ovo. Parecia que estava a procurar melhor ninho. Assim, quando o miúdo Beto veio-lhe chamar e falou que a Cabíri estava presa num cesto na casa de nga Bina, nga Zefa já sabia: a galinha tinha posto o ovo no quintal da vizinha. Saiu, e sô Zé da quitanda ficou na porta a espiar, via-se bem a zanga na cara da mulher. (barulho de briga) Passou luta de arranhar, segurar cabelos, insultos de ladrona, cabra, feiticeira. Perto da Cabíri, um bonito ovo branco brilhava. Parecia que ainda estava quente, metia raiva em nga Zefa. A discussão não parava mais. Nga Zefa, com as mãos na cintura, estendia o corpo magro, cheio de ossos, os olhos brilhavam assanhados para falar.
Zefa: Você pensa eu não te conheço, Bina? Pensa? Com essa cara assim, pareces é uma sonsa, mas a gente sabe!... Ladrona é o que você é!
Narrador 2: A vizinha, nova e gorda, esfregava a mão larga na barriga inchada, a cara abria num sorriso, dizia, calma:
Bina: Ai, veja só! Ainda fica me acusando! Vieste na minha casa, entraste no meu quintal, quiseste pelejar mesmo! Sukuama! Não tens respeito, então, assim com a barriga. Nada?!
Zefa: Não vem com essa, Bina! Querias me roubar a Cabíri e o ovo dela!
Bina: Ih! Te roubar a Cabíri e o ovo?! O ovo é meu!
Zefa: Mas a minha galinha é que pôs...
Bina: Pois é, mas pôs no meu quintal!
Narrador 2: Passou um murmúrio de aprovação e desaprovação das vizinhas, toda a gente falou no mesmo tempo, só velha Bebeca adiantou a falar sua sabedoria:
Bebeca: Calma! A cabeça fala, o coração ouve! Todas estão a falar no mesmo tempo! Fala cada qual na sua vez e a gente vê quem tem a razão. Somos pessoas, sukuama, não somos bichos!
Bina: A galinha é de Zefa, não lhe quero. Mas a galinha dela vem no meu quintal, come meu milho, debica minhas mandioqueiras, dorme na minha sombra, depois põe o ovo e aí o ovo é dela? O ovo foi meu milho que fez, pópilas! Agora o ovo é meu!
Zefa: Mas a galinha é minha, o ovo é meu! Era só pedir... Se eu quero dou, se não não dou!
Bina: Então, vovó Bebeca?! Fala então a senhora é que é nossa mais velha...
Bebeca: Minhas amigas, a cobra enrolou na muringa! Se pego a muringa, a cobra morde; se mato a cobra, a muringa quebra! Você Zefa, tem razão: a galinha é sua, o ovo da barriga dela é seu. Mas Bina também tem a razão dela: o ovo foi posto no quintal dela, a galinha comia o milho dela... É melhor perguntarmos ao sô Zé... Ele é branco!
Narrador 2: Sô Zé, dono da quitanda, estava a chegar chamado pela confusão. Ouviu estes casos, e ficou sério, a cara dele era aquela máscara de riscos e buracos feios onde só o olho azul bonito brilhava lá no fundo. Pegou Bina no braço e pôs sua opinião:
Sô Zé: Pronto! Já sei tudo! Tu dizes que a galinha pôs no teu quintal, que o milho que ela comeu é teu e, portanto, queres o ovo. Não é? O milho que te vendi fiado ontem? E dizes que o ovo é teu? Não tens vergonha? Dona Bebeca! O ovo é meu! Diga para me darem o ovo. O milho ainda não foi pago!
Narrador 2: A confusão cresceu, ficou quente. Só se ouviam gritos, lamentos, asneiras, tudo misturado com o cantar da galinha assustada, os risos das crianças, os ventos nas folhas da mandioqueira... Por isso ninguém deu conta da chegada da patrulha. (sirene) Os soldados começaram a girar os cassetetes em cima das cabeças. Um gordo sargento agarrou a galinha. Enquanto nga Zefa tentava tirar o bicho das mãos dele aconteceu aquilo que parecia feitiço e baralhou muita gente... Acontece que o miúdo Beto tinha aprendido com o velho Petelu a linguagem das galinhas. Desapareceu da confusão e, com sua técnica...
(Som de galo)
Narrador 2: Eram cinco e meia quase, o sol ainda brilhava muito e a noite vinha longe. O calor era pesado e gordo. Como é que um galo tinha-se posto a cantar assim, naquela hora, a sua cantiga de seduzir galinhas? A cabeça da galinha Cabíri virava em todos os lados, revirando os olhos, a procurar no meio do vento esse cantar conhecido que a chamava... (galo) Então espetou com força as unhas dela no braço do sargento, arranhou fundo, fez toda a força batendo nas asas. As pessoas batendo palmas, viram a gorda galinha sair a voar por cima do quintal, com pressa. Os soldados saíram, resmungando a ocasião perdida de um churrasco sem pagar. No meio do cantar do galo, nga Zefa sabia que o canto estava a sair no quintal dela, conheceu muito bem a voz do filho, esse malandro miúdo que imitava as falas de todos os bichos, enganando-lhes. Vovó Bebeca sorriu também. Segurando o ovo na mão seca, entregou para Bina.
Bebeca: Posso dar o ovo para Bina, Zefa?
Narrador 2: Envergonhada ainda, a mãe de Beto não queria soltar o sorriso que rebentava na cara. Pra disfarçar, começou dizer só:
Zefa: Sim, vovó. É a gravidez. Essas fomes, eu sei... E depois o miúdo na barriga reclama!...
Narrador 2: De ovo na mão, Bina sorria. O vento veio devagar e, cheio de cuidados e amizades, soprou-lhe o vestido gasto contra o corpo novo. Mergulhando no mar, o sol punha pequenas escamas vermelhas lá embaixo nas ondas mansas da Baía. Diante de toda a gente, a barriga redonda e rija de nga Bina, debaixo do vestido, parecia era um ovo grande, grande...
Narrador 1: Minha estória. Se é bonita, se é feia, vocês é que sabem. Eu só juro que não falei mentira e estes casos passaram nesta nossa terra de Luanda.